A SEXUALIDADE E A DROGRADIÇÃO FEMININA

A vivência da relação sexual relatada por mulheres antes e durante o atendimento

em sessões de psicoterapia de grupo em um serviço ambulatorial

OBJETIVOS
O objetivo deste trabalho é apresentar e discutir o relato da vivência da relação sexual, com e sem o uso de drogas, de um grupo de mulheres em tratamento em um serviço ambulatorial para transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas.

INTRODUÇÃO
Os grupos psicoterapêuticos são parte fundamental do tratamento multidisciplinar oferecido pelo Programa da Mulher Dependente Química (PROMUD) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP), serviço ambulatorial voltado exclusivamente à assistência da mulher dependente de álcool e outras drogas. Orientados pela escuta psicanalítica, os grupos funcionam como um espaço de reflexão sobre suas vivências afetivas, relacionadas ou não ao uso de drogas. Em um dos grupos do ambulatório a temática sexual se apresentou insistentemente de tal forma que motivou a produção deste relato de caso.

Segundo Hochgraf & Brasiliano (2010), devido ao uso de drogas ser um comportamento tradicionalmente mais ligado ao homem que à mulher, o referencial teórico existente que fundamenta a prática clínica foi desenvolvido basicamente a um modelo de tratamento de homens. Apenas recentemente, tem-se notado uma preocupação em relação à mulher que faz uso de substâncias psicoativas, mas ainda muitas dessas publicações estão ligadas a modelos pré-conceituais e sem comprovação na experiência clínica.

RELATO DE CASO
O grupo psicoterapêutico teve início em fevereiro de 2011 com oito pacientes com idade entre 25 e 35 anos, dependentes de álcool, maconha, cocaína e crack. Com freqüência semanal e uma hora de duração, é coordenado por uma terapeuta. Em relação ao momento atual do tratamento, seis estão
abstinentes há mais de seis meses, uma foi encaminhada para atendimento individual (retornará para o grupo dentro de seis meses) e duas estão em processo de alta seguindo os critérios do programa.

O discurso do grupo sobre o tema sexualidade é permeado pela presença e ausência do uso de drogas, embora o conteúdo sexual prevaleça em relação à droga durante as sessões. As falas revelam o exagero tanto na vontade de fazer sexo, quanto no número de parceiros sexuais. “Não consigo ficar sem sexo…mudei de casa e fiz despedida (de sexo) no bairro”. Dizem também da ausência do desejo e até mesmo da insignificância que o sexo representa. “Não sinto falta de sexo, já sei que vou ficar sozinha. Não quero mais ninguém na minha vida”. O discurso fala ainda da espera de um amor, um companheiro e filhos. “Não estou preocupada com sexo agora, quero esperar meus filhos crescerem”. Relata-se a insatisfação sexual com o(a) parceiro(a) atual. “O desempenho sexual do meu namorado não é tão bom quando eu penso no ex. Quando transávamos, usávamos drogas. Era muito bom”.

A droga também está presente nas questões relacionadas ao corpo, como o ganho de peso após o tratamento, através de uma linguagem que ultrapassa a barreira do “convencional” e toca o bizarro: “Agora sou gorda, mas quando eu usava crack, era fina, minhas roupas caiam”; “me sinto um maracujá, escuto minhas banhas batendo durante a relação sexual”; “não consigo me olhar no espelho”; ”estou tão gorda
que não consegui limpar minha bunda”. Percebe-se que algumas delas se esforçam para acreditar que, mesmo com o ganho de peso e com queixas sobre a sexualidade, tiveram uma melhora importante por estarem sem as drogas.

DISCUSSÃO E ANÁLISE
Autores como Roig et al (2001) e Birman (1999) relatam casos de mulheres dependentes de substâncias psicoativas com características que se aproximam às das mulheres deste estudo. Nota-se uma dinâmica transgressora na relação pai-filha: dinâmica esta de caráter erotizado, sexualizado e até incestuoso. Esse tom transgressor e perverso aparece não só na prática da sexualidade, mas também na linguagem verbal que impacta com seu tom bizarro, ao relatarem suas experiências sem constrangimento ou censura, o que aponta para uma possível falha na operação da castração. Por exemplo: “Meu ex-marido me fazia andar de quatro para me dar uma pedra… queria que o cachorro me lambesse… Já cheguei a cheirar cocô
achando que fosse droga”.
Algumas dessas mulheres parecem sentir, inconscientemente, um constante medo da concretização da relação incestuosa com seu progenitor. Como apontam Roig et al (2001), talvez seja justamente para aliviar essa tensão que lancem mão do anestésico droga, que funcionaria como uma barreira contra esse contato extremamente erotizado entre ela e seu pai. Já que não ocorreu a operação da lei no pai, ele não consegue transmiti-la nem exercê-la na relação com sua filha. A mãe por sua vez, permanece atuando nessa trama familiar de duas formas: invasiva ou ausente em relação à filha.

A droga pode servir também como um anteparo para as questões sexuais, principalmente quando carregam conteúdos traumáticos como os descritos acima. O uso e abuso de sustâncias tóxicas obstrui a passagem para o problema sexual, evidenciando a relação fortemente estabelecida entre a drogadição e a sexualidade (Garcia,1998). No grupo estudado, as pacientes relatam que usam drogas para obter a sensação de poder, sem falhas, com ótimo desempenho sexual, auto-estima elevada e destemidas na conquista de parceiros. “Bebia para me soltar”; “quando usava droga era diferente, todo mundo me conhecia. Podia ter quem eu queria”; “pensei em roubar o celular de uma pessoa”; “comecei usar droga com meu ex-marido. Não conseguia fazer sexo. Ele disse que eu ia fumar e relaxar”. Essas são marcas da relação entre a droga e a sexualidade vivenciada neste grupo.

Percebe-se uma prevalência de pacientes homossexuais, de mulheres que se sentem masculinas ou daquelas que apresentam uma imagem masculinizada. Essa é uma importante constatação: ao se identificarem com o masculino, barram ou se defendem do incesto, escolhendo como objeto uma pessoa do mesmo sexo (Roig et al, 2001). Este mecanismo se assemelha à estratégia de defesa relatada pelas pacientes em tratamento no PROMUD.
Talvez essa escolha de objeto e essa imagem masculinizada sejam tentativas de negar aspectos e comportamentos que elas associam ao feminino, como a passividade e a submissão. É possível que a sua origem dessa escolha à indefinição da escolha da posição de gênero, uma vez que os conflitos do Édipo ainda não foram minimamente dissolvidos no caso dessas pacientes. Além disso, sabe-se também que o sexual tem uma pluralidade de objetos possíveis, sendo a escolha de um parceiro do outro sexo apenas um dentre os diversos objetos eróticos (Birman,1999). A teoria psicanalítica ensina que a constituição do sujeito está estreitamente atrelada ao desenvolvimento da sexualidade. Essa afirmação ajuda a entender porque ao “escolher” comportar-se como um homem, ela estaria livre de ameaças perturbadoras e até desestruturantes em termos psíquicos.

Por fim, como uma reação à posição assumida pela mãe no triangulo edípico – de ausência e apatia – a filha pode passar a desvalorizar a feminilidade, que toma a forma de uma homossexualidade precária ou ainda não definida; ou ainda de um comportamento masoquista e submisso nas práticas sexuais bizarras. As dificuldades com a figura materna também provocam profundas marcas na estruturação psíquica, uma vez que o ataque à mãe internalizada provoca um sentimento de culpa, que por consequência costuma gerar angústias paranóides. Algumas pacientes atacam agressivamente seu lado feminino, seja negando ou o humilhando. A maioria apresenta problemas de auto-aceitação de sua imagem corporal e se auto-depreciam. “Não falo com minha mãe há muito tempo. Ela acha que eu tenho culpa” (referindo-se ao abuso sexual ocorrido na infância). “Minha mãe prefere homens, acha que por ser menina preciso de menos cuidado.” Relato da paciente que joga futebol e diz ter sido cuidada pela vizinha. Diante disso, é possível relacionar a busca constante por aspectos do feminino que na realidade tangem o masculino, uma vez que os modelos introjetados são falhos e contraditórios.

Para facilitar a compreensão da dinâmica familiar das pacientes e sua relação com a sexualidade e as drogas, foram confeccionados dois quadros comparativos. O Quadro 1 apresenta as principais características, papéis e interações familiares das pacientes na trama edípica prevalente nestes casos.

O Quadro 2 apresenta de forma as funções que o sexo e a droga exercem nas suas vidas.

Quadro 1. Configuração da tríade edípica e o exercício de seus papéis

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conteúdo deste trabalho ressalta a importância de prosseguir investigando teórica e clinicamente as implicações da drogadição entre as mulheres.Tratar de questões relacionadas a drogas e sexualidade feminina em um mesmo espaço só é possível quando se criam condições para isso. Um espaço de tratamento específico para mulheres, com uma escuta analítica devidamente preparada, proporciona a
liberdade necessária para que elas possam dizer o que precisa ser dito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIRMAN, J. Cartografias do feminino. Ed. 34: São Paulo, 1999
ROIG, P. M. ; AJZEMBERG R; TISSOT C. L. – A família da mulher dependente. In: Eduardo Kalina. Clinica e Terapêutica de
Adições. Ed. Artmed: São Paulo, 2001.
GARCIA, C. O ato de consumir drogas e a realidade virtual. In: Lenita Bentes e Ronaldo Gomes (Orgs) – Escola Brasileira de
Psicanálise- O brilho da inFelicidade/ Kalimeros. Contra Capa Livraria: Rio de Janeiro,1998.
HOCHGRAF, P. B.; BRASILIANO, S. Mulheres e substâncias psicoativas. In: Sergio D. Seibel (Org.). Dependência de drogas. 2a
edição. São Paulo: Atheneu, 2010.

AUTORES:

Sanches MV; Brito LMA; Aguiar MT; Yoshida, L; Trinca RT; Hochgraf PB; Brasiliano S